Feminicídio no DF: A violência de gênero na capital do país é um medo diário vivenciado pela população feminina. Em 2021, a cada 14 dias, uma mulher foi vítima de femincídio no Distrito Federal e, a cada 24h, outras 45 foram vítimas de violência doméstica, conforme dados da Secretaria de Segurança Pública do DF (SSP-DF). Este ano, os números seguem preocupantes, o Correio apurou que uma mulher é morta a cada 16 dias. Um desafio para o poder público, que precisa garantir segurança a suas cidadãs.
No último fim semana, mais duas mulheres passaram a integrar as estatísticas da misoginia assassina do feminicídio: uma moradora de Planaltina, em Arapoanga, foi esganada e morta pelo marido, enquanto outra foi esfaqueada pelo ex-companheiro, em Sobradinho, e luta pela vida no Hospital Regional de Sobradinho (HRS).
Parte da dificuldade em vencer a violência de gênero se deve ao aspecto cultural. A avaliação é da professora do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB), Edlene Oliveira Silva.
“As ações do estado se mostram lentas porque a violência de gênero não é uma questão individual. É preciso mudar a mentalidade machista e sexista e educar homens e mulheres para o respeito e para a igualdade de gênero. Os homens são criados para mandar, ser agressivo e se impor pela força. Enquanto as mulheres aprendem a serem submissas, cuidarem da casa e dos afazeres domésticos e tentarem manter a todo custo o casamento, inclusive suportando casos de violência e acreditando que o amor pode transformar feras em príncipes”, expõe a especialista ao analisar os casos de feminicídio no DF.
Ela destaca que na luta pelo rompimento dos ciclos de violência, um dos maiores aliados é a educação. “Precisamos discutir o problema em todas as esferas sociais. É preciso mostrar que a violência não é natural, por isso a criação de políticas públicas são tão importantes. Mas é um caminho lento, o que torna o debate social amplo e contínuo ainda mais urgente e necessário”, defende.
No feminicídio, o inimigo é conhecido
Desde março de 2015, quando entrou em vigor a Lei do Feminicídio, até o mês de janeiro de 2022, 76,1% dos casos ocorreram dentro das residências (leia Misoginia em números). A informação é da Câmara Técnica de Monitoramento de Homicídios e Feminicídios (CTMHF) da SSP-DF.
De acordo com a pasta, em 85,9% dos casos, os autores dos crimes de feminicídio eram maridos ou companheiros das vítimas. “Os dados revelam, ainda, que em 84,3% dos casos a motivação foi o sentimento de posse ou ciúme. Em 99,3% dos casos, os crimes foram elucidados com identificação do autor. De março de 2015 a janeiro de 2022, 70,6% das vítimas de tentativas de feminicídio não haviam registrado ocorrências anteriores de violência doméstica”, informa a SSP-DF.
O caso de Sobradinho 2 combina os elementos desse levantamento. Depois de três meses de separação, um homem de 45 anos esfaqueou a ex-companheira, 41 anos, no abdômen, na Vila Buritis. Segundo o delegado-chefe da 13ª DP (Sobradinho), Hudson Maldonado, o casal teve um relacionamento que durou 13 anos. “Ele dizia para a vítima que se ela arrumasse outro companheiro, ele a mataria”, conta Maldonado. À polícia, a irmã da vítima relatou que o homem era ciumento e tinha episódios recorrentes de violência.
Durante um encontro familiar na casa da ex-companheira, o agressor inconformado com a separação compareceu ao local e ficou sentado em frente à casa, no meio fio. A vítima foi ver o que se passava e o homem a ameaçou. “Em dado momento, (ele) tirou a faca e a agrediu na altura do abdômen”, conta. A mulher foi atendida no hospital em estado grave e passou por cirurgia. Apesar de episódios anteriores de agressão e tentativa de feminicídio, a vítima ainda não havia feito registros de ocorrência policial contra o ex-companheiro.
No caso de Arapoanga, o medo e o silêncio marcam a Quadra 9. Os moradores estão assustados com o crime da manhã do último domingo em que Silvestre Pereira, 44 anos, matou esganada a companheira Joana Santana Pereira dos Santos, 41 anos, e tentou se matar logo depois. A mulher deixou quatro filhos, entre seis e 19 anos. Segundo informações, o feminicídio aconteceu pela manhã, no quarto do casal, enquanto as crianças menores dormiam nos outros cômodos. Delegado-chefe da 31ª Delegacia de Polícia (Planaltina), Fabrício Augusto Paiva explica que antes de tentar suicídio, Silvestre ligou para um dos irmãos e confessou o crime.
“Ele ligou para o irmão e disse que estava muito endividado, devendo para agiotas de Planaltina e que eles o estavam ameaçando de morte. Que por causa disso tinha tido uma discussão com a esposa (Joana) e que tinha feito besteira [feminicídio]. Ele contou ao irmão que acabou matando ela e que ia se matar. O irmão acionou a polícia e ligou para outro familiar. Quando a polícia chegou, com os irmãos de Silvestre, encontrou as crianças dormindo sem saberem de nada. No quarto do casal a mulher estava morta, com marcas de esganadura e Silvestre tinha marcas de uma facada no estômago e outra no pescoço, mas ainda respirava”, detalha
Ele está estável e internado no Hospital Regional de Planaltina e assim que tiver em condições irá para a carceragem da PCDF. Silvestre pode pegar de 12 a 30 anos de prisão. Não há registros de denúncias contra ele por parte de Joana e os vizinhos afirmam que era um casal tranquilo.
Ciclo da violência
Coordenadora do curso de serviço social da Universidade Católica de Brasília (UCB), Moema Bragança Bittencourt
Há um grande debate em relação a um aumento da violência de gênero no século 21 ou se o que temos é uma lei que qualifica esse tipo de crime, como a Maria da Penha, e políticas públicas, como a Casa da Mulher Brasileira, que reconhecem a sociedade patriarcal, o que possibilita que as mulheres se sintam mais protegidas pelo Estado para denunciar episódios de violência, diferente do que era vivenciado no começo dos anos 2000. Por isso, vivemos em um cenário que não sabemos se aumentou o número de casos ou se as estatísticas são um resultado das políticas públicas em identificar esses casos e dar suporte para as mulheres que estão vivendo quadros de violência.
Principalmente porque as relações se baseiam em ciclos de violência que não começam com agressão física, mas com situações impostas como demonstração de amor, como cuidado excessivo, levar e buscar a mulher de uma simples ida ao cabeleireiro, passar a ser controlado pelo companheiro em todas as atividades e vestimentas, impedir encontros com amigas. Depois, essa perspectiva de posse vai piorando, e vai mostrando a face da violência, o que pode terminar chegando ao fim do ciclo da violência contra a vida da mulher. O problema é que quando chega nesse estágio, a violência psicológica já deixou sequelas muito profundas, de baixa auto-estima e dependências financeiras, o que torna difícil romper esse ciclo.
Inspiração
O Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCDF), em comemoração ao mês das mulheres, realizará hoje, às 15h, a roda de conversa “Mulheres que inspiram o DF”. O Evento, organizado pela Escola de Contas do TCDF, é aberto ao público em geral e será transmitido ao vivo pelo canal do Tribunal no YouTube.